terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Fantástico constrói cópia fiel da boate Kiss e mostra série de erros


O que havia de errado dentro da boate Kiss? Quantas pessoas cabiam lá dentro? O que poderia ter evitado a tragédia?
Em busca dessas respostas, o Fantástico chamou um especialista em gerenciamento de risco, conversou com pessoas que estavam lá e com quem conhece bem a casa e construiu uma réplica da boate, em tamanho real, com base nas informações das plantas do imóvel.
O que há por trás da fachada? A planta mais recente da boate Kiss que consta na prefeitura de Santa Maria é de 2009, mas sofreu alterações, como outra de 2011, que modificou a área da pista principal.
Desde então, outras reformas foram feitas - sem conhecimento das autoridades.
A partir de depoimentos de pessoas que conhecem bem a boate, o Fantástico atualizou a planta e construiu uma cópia fiel, usando as mesmas medidas. Era assim a boate Kiss na noite de 27 de janeiro de 2013.
Com essa reprodução nós pretendemos entender por que tanta coisa deu errado naquela noite. E mais: a gente também vai mostrar que medidas simples podem garantir a segurança de qualquer estabelecimento. E evitar tragédias como a de Santa Maria.
Para isso, o Fantástico conversou com o engenheiro Moacyr Duarte, especialista em gerenciamento de riscos e planejamento de emergências. Luciene e Marcelo - que estavam na boate Kiss na madrugada de domingo passado e conseguiram escapar. E a Vanessa Vasconcellos, que foi relações públicas da casa por dois anos e conhece detalhes da infraestrutura.
Entrando, a gente tem a dimensão real do tamanho da casa. Eram 23 metros de fachada por 26 metros de profundidade.


Para entrar, as pessoas passavam por uma grade. À direita era a bilheteria da casa, onde as pessoas pegavam as comandas, passavam por essa grade e entravam na boate, por uma porta. Após a porta, mais uma grade.
"Essa posição dessa grade ela inutiliza a abertura das portas. Tem dois metros de porta, mas, na verdade, o espaço disponível para a passagem das pessoas é estreito. Uma largura que não é suficiente para passarem duas pessoas ao mesmo tempo. Isso sem dúvida foi responsável por um grande retardamento da saída", analisa Moacyr Duarte.
Imagens mostram como ficou o espaço depois do incêndio. Segundo os bombeiros, a boate Kiss tinha capacidade para 691 pessoas.
“Como essa conta é feita?”, pergunta o repórter.
“Descontando todo o espaço do interior da casa que não é ocupado pelo público. Ou seja, deixando só a área em que o público realmente fica. Quando você tiver a área restante, isso é para público em pé, dividido por 0,4 metros quadrados. Aí você acha o número de pessoas da casa”, responde Moacyr.
0,4 metros quadrados é o espaço necessário para que uma pessoa de 70 quilos fique em pé sem que ninguém encoste.
Vanessa diz que, quando era responsável pela impressão das comandas, era praxe fazer mil comandas impressas por festa. Além dessas mil, segundo ela, de 200 a 500 comandas eram guardadas para o caso de haver mais pessoas. Ela contou que era dito que a capacidade da boate era de 1,2 mil pessoas. Luciene testemunha que tinham pelo menos mil pessoas lá no dia.
Simulamos a lotação com as 691 pessoas permitidas. Com mil pessoas, a boate estaria praticamente sem espaços vazios.
Para chegar ao lugar do show há duas grades, um vão e um degrau. Uma parte da pista é rebaixada em relação ao resto da casa.
Vanessa fala que até novembro eram três degraus, e os donos da boate resolveram elevar o piso por questões estéticas. Vanessa conta também que o dono da boate contou que foram gastos R$ 60 a R$ 70 mil na reforma.
Eram quase três daquela madrugada quando a banda Gurizada Fandangueira subiu ao palco. No depoimento à polícia o vocalista da banda, Marcelo Santos, disse que entre seu braço e o teto havia uma distância de no mínimo dois metros.
Vanessa diz que se o vocalista tem 1,8m, com o braço levantado, teria mais um metro até o teto, no máximo.
“O que se sabe até o momento é que ele levantou um artefato pirotécnico e apontou para o teto. A partir daí, há o início do incêndio e as pessoas relatam um pequeno foco. O que elas não percebiam é que esse incêndio se espalha na espuma por dentro do forro”, declara o professor.
A área sobre o palco era revestida de espuma feita de material tóxico. Nessa hora, a Luciene estava de frente para o palco.
“Daí o segurança alcançou o extintor para um deles. Eles romperam o lacre e tentaram umas três vezes apagar. Daí começaram a jogar água. Só que as pessoas continuaram dançando. Ninguém percebeu. A gente começou a sair. De repente, houve um estrondo e apagou a luz. Quando chegamos perto da saída, havia uma multidão pedindo para o segurança abrir a porta. Mas ele disse que não, que teria que pagar a comanda antes de sair. Daí o outro segurança deu a volta, viu e falou: ‘libera, que é fogo mesmo’. Eles abriram a porta, uma multidão imprensada, mas conseguimos sair. A grade atrapalhou muito. Muita gente tropeçou. Quando saímos, a fumaça já estava saindo pela porta. Aquela fumaça preta. Horrível. Não dava para ver mais nada”, contou Luciene.
Na hora do incêndio, Marcelo Carvalho estava num mezanino, de frente para o palco.
“Eu vi um pequeno fogo na frente do palco e um cara com um extintor tentando apagar. As pessoas estavamcorrendo, mas eu fiquei parado. Pensei que o fogo seria controlado. Quando me virei de costas para sair, veio a fumaça. Eu tapei o nariz e fiquei respirando pela boca. Fui sendo empurrado pelas pessoas. Na calçada, eu caí no chão. Não sei se tropecei ou se a fumaça já estava muito forte. E estava cheio de gente fora já. As pessoas passando por cima dos que estavam caídos”, lembrou Marcelo.
Em Santa Maria, ouvimos Murilo. Ele também estava na boate, na área central, encostado na grade de uma das áreas vip.
“Nem estava prestando muita atenção na banda. Aí um amigo falou: ‘meu, pegou fogo’”, disse.
Nós convidamos o Murilo para estar na reconstrução da boate Kiss, mas ele não foi autorizado pelos médicos a viajar.
“A gente foi no tumulto. Quando percebi, bati na grade e fiquei preso. Aí começou a apertar. Quando olhei para trás, me apavorei. Estava a boate inteira pressionando para sair. Daí comecei a falar: ‘não, tem uma grade’. Consegui deslocar alguma coisa e coloquei a perna por cima da grade. Fizeram pressão de novo e já fui caindo. Em uns 50 segundos eu cheguei na porta. Fiquei um minuto e meio preso na grade”, afirmou Murilo.
Na hora do incêndio, também havia muita gente na segunda pista.
“Se eu estivesse lá, tenho certeza que não teria a menor ideia do incêndio”, ressaltou Murilo.
“A fumaça que começa no teto é diferente da que começa no chão?”, pergunta o repórter.
“Quando o fogo começa no chão, a fumaça se espalha pelo teto e dá a oportunidade que as pessoas se moçam rente ao assoalho. Quando o fogo começa no teto, a fumaça faz um grande colchão quente, até encontrar as paredes laterais. Onde ela desce e envolve o ambiente. Isso elimina a conduta segura de andarem rente ao chão”, respondeu Moacyr.
“Isso tem soluções simples?”, questiona o repórter.
“Sim. O artefato pirotécnico é de poucos segundos. Se houvesse uma cobertura na espuma, com compensado tratado ou outro material resistente, não teria sido suficiente aquela fonte térmica para iniciar o fogo e nada disso teria acontecido”, disse Moacyr.
"Qual solução poderia ter sido usada para escoar essa fumaça?”, quis saber o repórter.
“Tudo se falou a respeito do início do incêndio e do cenário. Menos da dispersão da fumaça, que foi o principal assassino nesse cenário. A solução é simples. É a abertura de janelas, basculantes, bem próximos ao teto, para que a fumaça automaticamente encontrasse sua saída rente ao teto e não fizesse esse movimento pelas paredes”, explicou o especialista.
Questionado pelo repórter, Marcelo conta que o ar condicionado soprava a fumaça depois do fogo. Segundo ele um duto de ar entre o palco e a pista empurrou a fumaça para a frente da Kiss.
Moacyr explica que o ar, provavelmente, tinha um disjuntor separado. Quando a luz caiu, o ar continuou a funcionar, sendo, provavelmente, uma das últimas coisas a ser desligadas.
“As normas técnicas não falam nada sobre drenagem de fumaça. Eu acho que a partir desse evento, isso deveria ser considerado como um dos elementos de orientação para as casas noturnas”, afirmou Moacyr.
Num dia normal de funcionamento da casa, a única saída é nos fundos da pista principal. Só uma pessoa passa pela porta.
No caminho, ficava o caixa, aonde as pessoas pagavam as comandas para sair da boate. Depois de pagar, o cliente ainda tinha mais um degrau para subir, uma portinha para passar e grades.
“Era um labirinto, né Moacyr?”, pergunta o repórter.
“É uma saída aceitável em termos de dia a dia. Mas como alternativa de fuga, ela é inviável, completamente”, respondeu.
Depois que os seguranças perceberam a gravidade da situação, abriram portas que tinham dois metros de largura. “Era muito pouco, né professor?”
“Para o fluxo que se espera, considerando que é a única saída, essa largura é pouca. Para a quantidade de pessoas que foi admitida na casa. A multidão faz um funil, que é condenado pela norma de emergência. A largura tem que permanecer a mesma ou alargar”, disse Moacyr.
“O que acontece com as pessoas nessa situação?”, pergunta o repórter.
“Como as pessoas estão muito próximas umas das outras e forçando passagem pela pressa, quando alguém empurra pelas costas, você se apoia nas costas da pessoa pela frente. Uma vez caindo, essa pessoa da frente se torna um obstáculo que ninguém vê e não consegue mais se levantar”, destacou o especialista.
Moacyr explica que as grades deveriam ser retiradas. Ressalta que as portas poderiam ser trocadas por portas de correr, o que aumentaria consideravelmente a saída.
“Existe a necessidade da sinalização de emergência orientar uma rota e não apenas a porta onde é a saída. Essa sinalização pode ser feita com luzes na parede, mas a mais eficiente no caso de fumaça fica no piso, marcando o caminho, para que as pessoas percam a orientação”, completou Moacyr.
Uma sobrevivente conta que muita gente foi parar no banheiro achando que era a saída, porque ali havia uma luz verde - não se sabe que luz era essa.
Os banheiros tinham janelas para a rua, que foram cobertas pelo revestimento de madeira. Quando pessoas desesperadas tentaram marretar a fachada para o resgate, essas janelas ficaram visíveis.
“Quando há situação de pânico, qualquer pessoa que se mova rápido em uma determinada direção, parece aos demais que sabe o que está fazendo. E todos vão atrás dessa pessoa. Chama-se isso de efeito manada”, contou Moacyr.
Letícia, irmã da Vanessa, era funcionária da boate. Ela estava na bilheteria na hora do incêndio, muito próximo à saída. Mas, ali não havia uma porta que desse para a rua. Para sair, os funcionários tiveram que pegar o fluxo dos clientes.
“Morreram porque não conseguiram fazer a volta”, contou Vanessa.
“Pelo que disse a Vanessa, com o montante gasto para reformar a casa, ele poderia ter feito uma casa muito bonita, moderna, e ao mesmo tempo segura. Eu chamo a intenção como emblemático no caso, o fato de um segurança estar combatendo o fogo no palco e outro retinha a saída. Um aparelho de rádio teria salvo muitas vidas”, afirmou Moacyr.
“Se aquela grade não estivesse ali, eu não teria ficado preso. Eu teria saído na mesma hora, então teria um minuto e meio a mais de gente saindo atrás de mim”, completou Murilo.
G1.COM

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